Livros Terminados em abril
Abril foi um mês em que a reading slump se fez sentir com força. A motivação para pegar num livro nem sempre apareceu, e a capacidade de ler foi menor do que o habitual.
Olá!
Espero que estejam bem.
Abril foi um mês em que a reading slump se fez sentir com força. A motivação para pegar num livro nem sempre apareceu, e a capacidade de ler foi menor do que o habitual. Mas, curiosamente, isso não se traduziu em leituras pouco prazerosas, pelo contrário. Li pouco, 4 livros, mas li em bom. Os livros que me acompanharam neste mês foram generosos e marcantes. Em vez de quantidade, é motivo de satisfação, certo?
Algum livro que tenham lido recentemente que vos tenha marcado particularmente?
We Have Always Been Here, de Samra Habib
Memórias; Queer; Islão; Identidade.
Lido para o Clube de Leitura Antirracista da Elga Fontes
Ouvi este livro em audiobook (lido pela autora) e foi uma excelente experiência. Senti que estava numa conversa longa e honesta, onde as palavras são escolhidas com cuidado, mas nunca deixam de ser diretas e acessíveis.
Este memoir é a história da procura por um lugar em si mesma, na família, na fé e no mundo. Samra conta-nos, de forma bastante franca, o seu percurso: desde a infância no Paquistão, no seio de uma família bastante religiosa pertencente a uma minoria religiosa islâmica frequentemente perseguida; pela descoberta da sexualidade, pela experiência de casamento forçado, pela redescoberta da identidade queer e tentativa constante de a conciliar com a sua fé.
O que mais me tocou foram as memórias da infância, no Paquistão. Há nelas uma pré-consciência de identidade que caminha lado a lado com momentos de alegria, mas também de dor. É uma infância que já carrega perguntas sem nome, onde os limites entre o que é permitido e o que é sentido se começam a desenhar. E Samra consegue traduzir isso com uma sensibilidade que emociona, sem precisar de grandes floreados. A escrita é acessível, mas não é superficial. É clara, poética na medida certa, e cheia de humanidade.
Este memoir não é uma história de “superação” no sentido tradicional, nem uma tentativa de dar respostas fechadas. Pelo contrário, o que senti foi um convite aberto ao diálogo sobre fé, corpo, pertença, desejo, comunidade, exílio, amor. Samra Habib não se apresenta como alguém que descobriu as respostas para todas as sua inquietações e incertezas, mas como alguém que continua a caminhar, a pensar, a descobrir. E isso torna a leitura muito ‘relatable’ e inspiradora.
We Have Always Been Here lembra-nos, também, que a identidade não é uma linha reta nem um destino fixo, mas um território em constante reconstrução. We Have Always Been Here oferece um testemunho muito necessário: sobre existir entre margens, sobre escutar a multiplicidade dentro de si mesme, e sobre a coragem de reivindicar uma existência complexa e cheia de nuances. Um memoir comovente, corajoso e, acima de tudo, generoso.
Rifqa, de Mohammed El-Kurd
Poesia; Palestina; Testemunho; Resistência.
Lido para o Spines Up! Bookclub, clube de leitura que a Marina e eu dinamizamos. Juntem-se no Discord e participem nos nossos encontros online em Coimbra (se não puderem, podem sempre participar na comunidade online no Discord).
Rifqa tornou-se rapidamente um dos meus livros de poesia favoritos. É raro encontrar uma escrita tão potente, tão ferida e ao mesmo tempo tão firme. Uma poesia que denuncia, que confronta com fúria e com vulnerabilidade. Mohammed El-Kurd escreve a partir da Palestina ocupada e do Ocidente, nos Estados Unidos. Cada poema é um ato de memória, de resistência, de testemunho. Mas mais do que isso: é também luta por libertação.
O livro tem o nome da avó do autor e carrega esse nome como se fosse um grito que ecoa ao longo das páginas, mas também um farol de força e de esperança. É uma poesia profundamente política, mas também profundamente íntima. Fala de colonização, de violência, de perda, de raiva. Ao mesmo tempo e, porque são inseparáveis, da casa da avó, da infância, de flores, fruta e brincadeiras. Sempre acompanhadas de morte, destruição e violência. E é nesse entrelaçar entre a brutalidade e a ‘banalidade’ que o livro ganha força: não há separação entre a dor coletiva e a vida privada. Tudo é político. E a colonização genocida infiltra-se, impõe-se em todos os poros da existência palestina.
Senti em muitos momentos que estava a ler um diário de guerra e um diário de luto, mas também uma carta de amor à Palestina, à família, à história que não se deixa apagar.
Rifqa é um murro no estômago e, ao mesmo tempo, uma mão estendida. É poesia como arquivo e como ferida aberta. E, acima de tudo, é poesia como resistência.
All Our Hidden Gifts, de Caroline O’Donoghue
Ficção YA; Fantasia Urbana; Tarot; Queerness.
All Our Hidden Gifts é uma leitura YA envolvente e cheia de camadas, que me surpreendeu muito pela positiva. Confesso que não sou a maior fã de livros YA, mas quero muito ler livros com representação de tarot (e astrologia! Aceito recomendações) e a achei que uma abordagem mais leve ia ser boa para a minha ‘reading slump’. Já deu para perceber que este é um livro sobre adolescentes, poderes mágicos e cartas de tarot (o que, para mim, já era um bom começo), mas vai além disso. É uma história sobre identidade, exclusão, pertença e magia, não só no sentido sobrenatural, mas na forma como as personagens se relacionam consigo próprias e com as outras pessoas.
A protagonista, Maeve, descobre, no seu colégio de freiras, um baralho de tarot antigo e, à medida que se começa a interessar pelas cartas e pelos seus significados, algo estranho começa a acontecer: uma amiga e colega da escola desaparece após uma leitura. A partir daí, o livro mistura mistério com questões sociais muito relevantes, como a intolerância, o conservadorismo religioso, a homofobia e a transfobia. Tudo isto sem perder o tom acessível e jovem, com uma escrita fluida e personagens cativantes.
Uma das coisas que mais gostei foi precisamente a personagem principal: Maeve é claramente ‘flawed’, muitas vezes egoísta, impulsiva, e perdida nas suas intenções e isso tornou-a muito mais interessante. Em vez de ser a típica “heroína perfeita”, ela parece muito mais humana, real. Fez-me lembrar, aliás, as Derry Girls (uma série que adoro!), não tanto pelo humor, mas por esse espírito adolescente tão caótico quanto honesto, entre o sarcasmo e a vulnerabilidade.
O livro também trabalha muito bem temas queer e de identidade de género, com destaque para Roe, personagem não-binária. Há uma sensibilidade bonita na forma como se fala de amizade, de amor e da dificuldade de sermos fiéis a nós mesmes num mundo que insiste em normatizar tudo. O simbolismo do tarot é outro ponto alto, mais do que um truque narrativo, funciona como linguagem para decifrar o mundo interior de cada personagem.
All Our Hidden Gifts é, no fundo, sobre a magia que existe em sermos quem somos, mesmo, ou sobretudo, quando isso nos coloca em risco. Tem humor, tem tensão, tem ternura, tem revolta. E, acima de tudo, apela à empatia e à aceitação que nunca soa forçado. É uma leitura com coração político, representatividade queer bem construída, e espaço para magia.
Furies: Stories of the Wicked, Wild and Untamed
Antologia Feminista; Contos; Várias Autoras.
Lido para o #abrilcontosmil da Mafalda
Furies: Stories of the Wicked, Wild and Untamed tornou-se uma das minhas coleções de contos favoritas. A coletânea reúne 15 contos autoras contemporâneas, entre as quais Margaret Atwood, Ali Smith, Emma Donoghue, Linda Grant, Claire Kohda, Caroline O’Donoghue, Chibundu Onuzo, Helen Oyeyemi, Kamila Shamsie… A forma como cada narrativa parte de um termo historicamente usado para desumanizar ou ridicularizar mulheres (como “hussy”, “banshee”, “termagant” ou “virago”) e o transforma em ponto de partida para explorar experiências femininas profundas e diversas, é muito poderosa. Os contos abordam temas como violência doméstica, envelhecimento, trabalho sexual, maternidade, menopausa, racismo, cruzando géneros como fantasia, ficção científica ficção literária e históricas, e até narrativa visual. É uma coletânea que celebra a diversidade de vozes femininas e a força da narrativa como ferramenta de ressignificação e resistência. Posso dizer que gostei praticamente de todas as histórias! O que não é nada comum.
Li 4 livros em abril, mas muito boas histórias e temas importantes. Sinto que estou a entrar numa fase em que irei ler menos e está tudo bem.
E vocês? Também andam em reading slumps ou foi um mês cheio de leituras? Contem-me o que andaram a ler e se leram algum livro recentemente que recomendam
Leram algum destes livros? Gostaram de algum?
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Sandra (SØPHIA)
Se a minha TBR acabou de aumentar? Sem dúvida.
Fiquei curiosa com o All Our Hidden Gifts 😉